Logo
depois de ouvir o aviso de Haryn, Ethan correu até sua casa, mas seus pais não
estavam lá. Às vezes as pessoas ainda ficavam conversando no pavilhão, mesmo
depois das histórias, e pensou que talvez pudesse encontrá-los ainda na praça.
Não sabia qual era o perigo de que Haryn o havia alertado, mas se era
necessário sair da aldeia, devia ser algo grave. Pegou algumas roupas e comida
apressadamente e saiu para tentar achar os pais.
A
tarefa de tentar tirar algumas pessoas da aldeia, de um perigo desconhecido,
incomodava-o. Como poderia escolher? E o que diria a elas? E talvez tudo não
passasse de um exagero de Haryn. Enquanto pensava nessas coisas, encontrou
Bunn.
–
Ethan? Ainda por aqui?
Ethan
sabia que podia confiar no amigo.
–
Preciso falar com você. Você viu meus pais?
–
Há um tempo, perto do relógio, mas não parece ter mais ninguém por lá, está
tudo quieto.
–
A aldeia está em perigo, não sei exatamente o que é, mas Haryn disse para eu
sair daqui e levar comigo algumas pessoas, mas além da minha família e de você,
não consigo pensar em ninguém.
–
Perigo? Que perigo?
–
Eu não sei.
–
E as meninas? – Perguntou Bunn preocupado. – Temos que levá-las.
–
Haryn está com as meninas, não se preocupe.
–
Você acha que tenho tempo para buscar algumas coisas?
–
Creio que sim, mas seja rápido. Vou procurar meus pais e te espero perto do
relógio.
–
Tudo bem – disse Bunn, já correndo para a hospedaria onde trabalhava e tinha um
pequeno quarto. Ele sabia que Ethan, e principalmente Haryn, não brincariam com
um assunto desses e por isso não perdeu muito tempo com perguntas, teria tempo
para isso depois. Se havia algum perigo ali, o melhor era ir para outro lugar,
aprendera isso desde pequeno.
Entrou
pela porta dos fundos e correu até seu quarto, pegando algumas roupas. Parou
para olhar pela janela, que dava para a praça do relógio e não havia ninguém. O
silêncio da aldeia era anormal. Correu de volta às escadas e foi até à cozinha
para pegar comida. Não havia ninguém no salão, nem na cozinha, e isso o deixou
mais nervoso. Sempre havia alguém ali.
Bunn
saiu apressado para encontrar Ethan, mas ele ainda não estava no relógio.
Resolveu procurar no pavilhão, pelo menos lá ele poderia perguntar para algum
mercador se havia visto o amigo, os mercadores sempre ficavam acordados até
tarde. Quando chegou ao pavilhão, também não encontrou ninguém. Tudo estava
muito estranho. Contornou a primeira barraca e começou a andar no grande
corredor. Tudo estava silencioso. Talvez Ethan tivesse voltado a sua casa para
ver se os pais estavam lá. Parou em meio às barracas e pensou se deveria chamar
por um dos mercadores. Preferiu não fazê-lo e começou a refazer seu caminho de
volta ao relógio. Quando contornava as casas que separava o pavilhão do
relógio, ouviu Ethan chamando o seu nome de maneira urgente. Sem saber
exatamente por que, decidiu não gritar de volta, mas se apressar. O relógio já
estava visível, mas Ethan estava de costas para ele e ainda não o vira. Mas ele
não estava sozinho. Três homens encapuzados se aproximavam, vindos do norte da
aldeia e Ethan não estava vendo. Às vezes alguns mercadores gostavam de
procurar brigas com os moradores e esse parecia ser o caso. Pensou em avisar o
amigo, mas alguma coisa ainda o impedia de gritar. Quando ia começar a correr
para ajudar Ethan, os homens se aproximaram dele a uma velocidade
impressionante e antes que Bunn pudesse ver ou fazer qualquer coisa, alguém o
puxou para trás de uma casa.
–
Você não pode mais ajudá-lo – disse Josh. – Precisamos sair daqui logo, vamos!
Bunn
não entendia, mas seguiu o ancião.
–
O que está acontecendo?
–
São homens do rei, estão aqui para matar todos os moradores da aldeia.
–
Mas por quê?
–
Isso eu não posso dizer. Vamos.
–
E Ethan?
–
Ele está morto.
Bunn
não sabia o que dizer. De alguma maneira já sabia disso, mas ainda estava
chocado.
–
Vamos, Bunn, temos que sair daqui.
Eles
passaram pelas sombras das casas e seguiram para o norte, pois Josh disse que a
parte sul da aldeia estava sendo vigiada. Andaram durante toda a noite em
direção ao oeste e só quando até mesmo as fazendas que rodeavam a aldeia não
estavam mais visíveis, viraram rumo ao sul.
–
Precisa descansar, Bunn?
–
Não, senhor, podemos continuar.
Bunn
estava muito silencioso e Josh achou estranho alguém tão jovem não enchê-lo de
perguntas. Seria o que Demi faria, com certeza.
–
Sinto muito por seu amigo.
Bunn
acenou com a cabeça.
–
Você está bem?
–
Sim, senhor.
Josh
resolveu deixá-lo em paz, mas depois de um tempo, Bunn falou:
–
Por que alguém iria querer matar uma aldeia inteira? O que fizemos para ofender
o rei?
–
Nada. O problema não é nada que fizemos, mas sim o que ouvimos.
–
E o que seria, senhor?
Josh
olhou-o. Parecia avaliar se Bunn era de confiança.
–
A versão contada do ritual dos dragões na noite anterior. É a verdadeira.
–
Como o senhor sabe disso, senhor? – Perguntou Bunn com olhos arregalados.
–
Essa é uma longa história, que não posso lhe contar – respondeu.
–
E o que dizia a versão? Não ouvi, estava com Aisni, a gente estava – Bunn
pareceu ficar envergonhado – estava conversando.
Depois
de um sorriso, Josh falou:
–
Não precisa se envergonhar, Bunn.
Logo
em seguida Josh repetiu apressadamente e em voz baixa a história contada pelo
contador de histórias.
–
E então uma aldeia inteira passou a saber que ainda existe um descendente da
linhagem antiga.
–
Mas, como ele sabia, senhor? Quero dizer, o cantor? E por que contou? Ele devia
saber do perigo se sabia a verdade e também... ninguém passou a saber nada
porque para todo mundo era só uma versão, não era?
Josh
ficou impressionado com o raciocínio do garoto, ele tinha razão sobre algumas
coisas.
–
Como ele sabia, eu não sei. Tentei encontrá-lo para perguntar, mas ele havia
desaparecido. Quanto ao motivo para ter contado, talvez ele quisesse exatamente
isso, colocar a aldeia em perigo. Algumas pessoas se divertem com o sofrimento
alheio. E realmente, as pessoas poderiam ter entendido aquilo somente como mais
uma versão, mas o rei não se arriscaria a ter uma aldeia inteira acreditando em
um herdeiro legítimo ao trono.
–
Mas como esses homens chegaram à aldeia tão rápido? E como eles mataram todas
as pessoas assim, em uma noite?
–
Meu palpite é que eles já estavam aqui. Acredito que sempre há homens do rei
nas quinzentinas de qualquer aldeia, justamente para ficar de olho em histórias
suspeitas e, se for preciso, fazer o trabalho sujo. O rei não se importa em
perder algumas aldeias, ele não precisa do povo. E esses homens não são homens
comuns. São a guarda especial do rei.
–
Mas então o rei sabe a verdade sobre o ritual dos dragões?
–
Sim, ele sabe – respondeu Josh, e ele parecia triste com isso.
–
Engraçado isso. Eu nunca nem tinha pensando no rei, era como se ele nem
existisse, fosse só uma lembrança. E agora ele não só existe como matou todas
as pessoas que eu conhecia.
Josh
reconheceu tristeza e raiva nessa afirmação, e falou:
–
O melhor conselho que posso te dar é para se afastar desse assunto. É algo
muito acima de suas capacidades, mesmo que você se torne um grande guerreiro.
Esse homem que se senta no trono, por tantos anos em silêncio, não é somente o
que aparenta ser.
–
Não se preocupe, senhor, não pretendo me meter com o rei. Só quero encontrar
Aisni, na verdade.
–
Acho que posso te ajudar com isso. Ela está com Haryn e sei que ele pretende
seguir para as montanhas do leste, mas não sei que rota ele pretende seguir.
Não ficarei com você por muito mais tempo, tenho coisas a resolver, mas
caminharemos juntos por pelo menos o resto do dia.
Andaram
por mais algumas horas antes de pararem para comer alguma coisa e descansar.
Quando voltaram a andar, rumaram para o leste e, ao longe, podia-se ver uma
floresta que se estendia pelo horizonte. Chegaram lá ao final do dia e pararam
novamente para descansar e comer. Já alimentados, Josh disse:
–
A partir daqui você vai ter que continuar sozinho. Meu caminho agora me leva ao
Norte distante. Mas se aceita um conselho, eu entraria na floresta, se fosse
você. Há pessoas que podem te ajudar e uma grande chance de encontrar Aisni aí.
Sei que Haryn não pretendia passar pela floresta, mas suspeito que ele possa
ter mudado de ideia.
–
Obrigado, senhor, farei isso.
–
Você tem comida?
–
Sim, senhor.
–
Muito bom. Você deve encontrar algumas frutas na floresta também. – Depois de
alguns minutos em silêncio, Josh completou: – Se você encontrar Demi, diga que
tudo ficará bem e que vamos nos ver logo.
–
Sim, senhor, eu direi.
Josh
sorriu. – Obrigado, rapaz. Tome cuidado e que os ventos lhe favoreçam.
–
O senhor também, tenha uma boa viagem.
–
Obrigado!
Bunn
ficou olhando Josh se afastar por um tempo e depois se embrenhou pela mata.
Andou por mais uma hora, até não conseguir mais ver a borda da floresta, e
então encontrou um lugar para passar a noite. Seu sono foi desconfortável e
curto e, um pouco antes do alvorecer, ele partiu novamente, indo cada vez mais
para dentro. Enquanto seguia entre as árvores, Bunn ia pensando em como
conseguiria sair de lá quando precisasse e também pensava se poderia arriscar
chamar o nome de Aisni, mas achou melhor não.
O
calor era intenso e o sol já devia estar alto no céu, mas Bunn não conseguia
vê-lo, pois as árvores eram altas e cheias de folhas. Ele gostava de andar
entre as árvores, estava acostumado a caçar na pequena floresta perto da
aldeia, mas essa era diferente. Além de ser muito maior, tinha algo de
diferente no ar, algo que se intensificava conforme ele continuava andando.
Quando imaginou que fosse mais de meio-dia, sentou-se para comer alguma coisa e
descansar um pouco os pés da caminhada.
O
cansaço poderia explicar o que aconteceu a seguir, mas isso não diminuiu em
nada a irritação de Bunn ao perceber que tinha adormecido. Acordou assustado e
viu que já era noite. Levantou rapidamente e começou a andar novamente, mas a
escuridão tornava difícil desviar de raízes e até mesmo alguns animais que
apareciam ocasionalmente em seu caminho. Bunn já estava quase desistindo de
tentar andar durante a noite quando ouviu pessoas conversando a alguma
distância. Por um momento ficou com medo de que fossem os homens da aldeia, mas
a conversa parecia alegre e descontraída, o que não combinava com eles.
Aproximou-se cautelosamente das vozes e se escondeu atrás de uma árvore para
conseguir ouvir. Havia quatro pessoas em torno de uma fogueira e duas delas
estavam conversando despreocupadamente, enquanto os outros dois dormiam, apesar
da conversa.
–
Eu ainda acho que Niara não deveria trazê-los.
–
Eu acho que talvez seja bom. Estamos a tanto tempo isolados aqui que ter alguns
forasteiros poderia ser interessante.
–
Mas quais as chances de eles serem divertidos? Não me parece provável.
–
Mas pode ser, oras! E as mulheres mortais são tão lindas. A mortalidade lhes
confere uma urgência em viver e em aproveitar a vida, e uma beleza passageira e
intensa, diferente das do nosso povo.
Bunn
atentou para a palavra ‘mortais’ e ficou mais interessado ainda naquelas
pessoas.
–
E o que isso quer dizer?
–
Quer dizer que são mais alegres e mais divertidas.
–
Mais alegres ou mais fáceis de serem enganadas por você?
–
Fácil é a última coisa que as mulheres são, seja da raça que for.
Nesse
momento ambos caíram na gargalhada. Bunn, ainda escondido, estava curioso e
fascinado. O que seriam eles? E existiria mesmo uma raça imortal que não fossem
os dragões, tão parecida com os humanos? Ficou perdido em pensamentos e, sem ao
menos perceber o que estava fazendo, se levantou e se dirigiu aos estranhos.
Eles
se levantaram assustados e deram gritos que acordaram seus companheiros
adormecidos. Nesse momento Bunn acordou do encantamento em que estava e
percebeu o que havia feito, sem entender como fora parar ali. Fez uma
reverência, pois não sabia mais o que fazer, e então ficou esperando que eles
falassem alguma coisa.
Depois
do susto, os estranhos pareciam ter se acalmado e os que estavam dormindo ainda
estavam confusos. Um dos que estavam conversando disse:
–
Quem é você e como chegou até aqui?
–
Meu nome é Bunn e cheguei até aqui andando, senhor.
Eles
riram quando ouviram seu amigo ser chamado de senhor.
–
Não precisa me chamar de senhor, Bunn, meu nome é Knut e esses são meus amigos
Nowak, Wilfred e Radomil.
Todos
acenaram com a cabeça.
–
Quando perguntei como chegou até aqui não me referi ao seu meio de transporte.
Quero saber como conseguiu passar por nossas barreiras.
–
Não encontrei nenhuma, senhor Knut.
– Knut – insistiu.
– Knut – repetiu Bunn.
–
Não encontrou?
Bunn
negou com a cabeça. Não conseguia encontrar palavras para descrever o que
estava vendo. Já ouvira lendas sobre seres mágicos e imortais, como os rovos,
mas nunca ouvira sobre essa raça tão incrivelmente parecida com os homens.
Eles
sussurravam entre si e pareciam preocupados. Depois de algum tempo, Knut voltou
a falar:
–
Você está perdido?
–
Posso dizer que sim, se... Knut.
–
E para onde vai?
–
Ainda não sei, na verdade.
–
Se importaria de nos acompanhar até nossas casas para falar com nosso líder?
Talvez ele possa ajudar e tenho certeza de que quererá lhe fazer algumas
perguntas.
–
Tudo bem. – Bunn tinha a impressão de que sua vontade não era relevante e que
eles o levariam de qualquer maneira e rezou aos deuses dragões para que não
fosse um povo mal.
–
Você está muito cansado ou pode caminhar? – Era sempre Knut quem falava.
–
Posso caminhar.
–
Está com fome?
Bunn
poderia comer algo, mas preferiu negar com a cabeça. Estava intimidado pela
estatura e beleza daqueles seres, todos de cabelos castanhos e com vozes
suaves.
–
Então nos dê alguns segundos e já partimos.
Bunn
esperou enquanto eles apagavam a fogueira e guardavam as poucas coisas que
carregavam. Eles estavam sempre sussurrando entre si e ele não conseguia ouvir
nenhuma palavra.
–
Podemos ir – disse Knut apontando o caminho.
Bunn
seguiu dois deles que já estavam em marcha, enquanto Knut e o outro vinham logo
atrás. Tudo o que tinha acontecido nos últimos dois dias parecia um sonho, mas
principalmente isso. Ele estava apavorado e maravilhado, achando que
provavelmente tinha caído em uma das lendas que ouvira, em que sempre havia
seres mágicos e aventuras. Só lamentava que não fosse uma lenda que conhecesse
e, sendo assim, não tinha ideia do que o aguardava adiante.