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quarta-feira, 27 de maio de 2020

As crônicas de Iniamar - capítulo 3


Logo depois de ouvir o aviso de Haryn, Ethan correu até sua casa, mas seus pais não estavam lá. Às vezes as pessoas ainda ficavam conversando no pavilhão, mesmo depois das histórias, e pensou que talvez pudesse encontrá-los ainda na praça. Não sabia qual era o perigo de que Haryn o havia alertado, mas se era necessário sair da aldeia, devia ser algo grave. Pegou algumas roupas e comida apressadamente e saiu para tentar achar os pais.
A tarefa de tentar tirar algumas pessoas da aldeia, de um perigo desconhecido, incomodava-o. Como poderia escolher? E o que diria a elas? E talvez tudo não passasse de um exagero de Haryn. Enquanto pensava nessas coisas, encontrou Bunn.
– Ethan? Ainda por aqui?
Ethan sabia que podia confiar no amigo.
– Preciso falar com você. Você viu meus pais?
– Há um tempo, perto do relógio, mas não parece ter mais ninguém por lá, está tudo quieto.
– A aldeia está em perigo, não sei exatamente o que é, mas Haryn disse para eu sair daqui e levar comigo algumas pessoas, mas além da minha família e de você, não consigo pensar em ninguém.
– Perigo? Que perigo?
– Eu não sei.
– E as meninas? – Perguntou Bunn preocupado. – Temos que levá-las.
– Haryn está com as meninas, não se preocupe.
– Você acha que tenho tempo para buscar algumas coisas?
– Creio que sim, mas seja rápido. Vou procurar meus pais e te espero perto do relógio.
– Tudo bem – disse Bunn, já correndo para a hospedaria onde trabalhava e tinha um pequeno quarto. Ele sabia que Ethan, e principalmente Haryn, não brincariam com um assunto desses e por isso não perdeu muito tempo com perguntas, teria tempo para isso depois. Se havia algum perigo ali, o melhor era ir para outro lugar, aprendera isso desde pequeno.
Entrou pela porta dos fundos e correu até seu quarto, pegando algumas roupas. Parou para olhar pela janela, que dava para a praça do relógio e não havia ninguém. O silêncio da aldeia era anormal. Correu de volta às escadas e foi até à cozinha para pegar comida. Não havia ninguém no salão, nem na cozinha, e isso o deixou mais nervoso. Sempre havia alguém ali.
Bunn saiu apressado para encontrar Ethan, mas ele ainda não estava no relógio. Resolveu procurar no pavilhão, pelo menos lá ele poderia perguntar para algum mercador se havia visto o amigo, os mercadores sempre ficavam acordados até tarde. Quando chegou ao pavilhão, também não encontrou ninguém. Tudo estava muito estranho. Contornou a primeira barraca e começou a andar no grande corredor. Tudo estava silencioso. Talvez Ethan tivesse voltado a sua casa para ver se os pais estavam lá. Parou em meio às barracas e pensou se deveria chamar por um dos mercadores. Preferiu não fazê-lo e começou a refazer seu caminho de volta ao relógio. Quando contornava as casas que separava o pavilhão do relógio, ouviu Ethan chamando o seu nome de maneira urgente. Sem saber exatamente por que, decidiu não gritar de volta, mas se apressar. O relógio já estava visível, mas Ethan estava de costas para ele e ainda não o vira. Mas ele não estava sozinho. Três homens encapuzados se aproximavam, vindos do norte da aldeia e Ethan não estava vendo. Às vezes alguns mercadores gostavam de procurar brigas com os moradores e esse parecia ser o caso. Pensou em avisar o amigo, mas alguma coisa ainda o impedia de gritar. Quando ia começar a correr para ajudar Ethan, os homens se aproximaram dele a uma velocidade impressionante e antes que Bunn pudesse ver ou fazer qualquer coisa, alguém o puxou para trás de uma casa.
– Você não pode mais ajudá-lo – disse Josh. – Precisamos sair daqui logo, vamos!
Bunn não entendia, mas seguiu o ancião.
– O que está acontecendo?
– São homens do rei, estão aqui para matar todos os moradores da aldeia.
– Mas por quê?
– Isso eu não posso dizer. Vamos.
– E Ethan?
– Ele está morto.
Bunn não sabia o que dizer. De alguma maneira já sabia disso, mas ainda estava chocado.
– Vamos, Bunn, temos que sair daqui.
Eles passaram pelas sombras das casas e seguiram para o norte, pois Josh disse que a parte sul da aldeia estava sendo vigiada. Andaram durante toda a noite em direção ao oeste e só quando até mesmo as fazendas que rodeavam a aldeia não estavam mais visíveis, viraram rumo ao sul.
– Precisa descansar, Bunn?
– Não, senhor, podemos continuar.
Bunn estava muito silencioso e Josh achou estranho alguém tão jovem não enchê-lo de perguntas. Seria o que Demi faria, com certeza.
– Sinto muito por seu amigo.
Bunn acenou com a cabeça.
– Você está bem?
– Sim, senhor.
Josh resolveu deixá-lo em paz, mas depois de um tempo, Bunn falou:
– Por que alguém iria querer matar uma aldeia inteira? O que fizemos para ofender o rei?
– Nada. O problema não é nada que fizemos, mas sim o que ouvimos.
– E o que seria, senhor?
Josh olhou-o. Parecia avaliar se Bunn era de confiança.
– A versão contada do ritual dos dragões na noite anterior. É a verdadeira.
– Como o senhor sabe disso, senhor? – Perguntou Bunn com olhos arregalados.
– Essa é uma longa história, que não posso lhe contar – respondeu.
– E o que dizia a versão? Não ouvi, estava com Aisni, a gente estava – Bunn pareceu ficar envergonhado – estava conversando.
Depois de um sorriso, Josh falou:
– Não precisa se envergonhar, Bunn.
Logo em seguida Josh repetiu apressadamente e em voz baixa a história contada pelo contador de histórias.
– E então uma aldeia inteira passou a saber que ainda existe um descendente da linhagem antiga.
– Mas, como ele sabia, senhor? Quero dizer, o cantor? E por que contou? Ele devia saber do perigo se sabia a verdade e também... ninguém passou a saber nada porque para todo mundo era só uma versão, não era?
Josh ficou impressionado com o raciocínio do garoto, ele tinha razão sobre algumas coisas.
– Como ele sabia, eu não sei. Tentei encontrá-lo para perguntar, mas ele havia desaparecido. Quanto ao motivo para ter contado, talvez ele quisesse exatamente isso, colocar a aldeia em perigo. Algumas pessoas se divertem com o sofrimento alheio. E realmente, as pessoas poderiam ter entendido aquilo somente como mais uma versão, mas o rei não se arriscaria a ter uma aldeia inteira acreditando em um herdeiro legítimo ao trono.
– Mas como esses homens chegaram à aldeia tão rápido? E como eles mataram todas as pessoas assim, em uma noite?
– Meu palpite é que eles já estavam aqui. Acredito que sempre há homens do rei nas quinzentinas de qualquer aldeia, justamente para ficar de olho em histórias suspeitas e, se for preciso, fazer o trabalho sujo. O rei não se importa em perder algumas aldeias, ele não precisa do povo. E esses homens não são homens comuns. São a guarda especial do rei.
– Mas então o rei sabe a verdade sobre o ritual dos dragões?
– Sim, ele sabe – respondeu Josh, e ele parecia triste com isso.
– Engraçado isso. Eu nunca nem tinha pensando no rei, era como se ele nem existisse, fosse só uma lembrança. E agora ele não só existe como matou todas as pessoas que eu conhecia.
Josh reconheceu tristeza e raiva nessa afirmação, e falou:
– O melhor conselho que posso te dar é para se afastar desse assunto. É algo muito acima de suas capacidades, mesmo que você se torne um grande guerreiro. Esse homem que se senta no trono, por tantos anos em silêncio, não é somente o que aparenta ser.
– Não se preocupe, senhor, não pretendo me meter com o rei. Só quero encontrar Aisni, na verdade.
– Acho que posso te ajudar com isso. Ela está com Haryn e sei que ele pretende seguir para as montanhas do leste, mas não sei que rota ele pretende seguir. Não ficarei com você por muito mais tempo, tenho coisas a resolver, mas caminharemos juntos por pelo menos o resto do dia.
Andaram por mais algumas horas antes de pararem para comer alguma coisa e descansar. Quando voltaram a andar, rumaram para o leste e, ao longe, podia-se ver uma floresta que se estendia pelo horizonte. Chegaram lá ao final do dia e pararam novamente para descansar e comer. Já alimentados, Josh disse:
– A partir daqui você vai ter que continuar sozinho. Meu caminho agora me leva ao Norte distante. Mas se aceita um conselho, eu entraria na floresta, se fosse você. Há pessoas que podem te ajudar e uma grande chance de encontrar Aisni aí. Sei que Haryn não pretendia passar pela floresta, mas suspeito que ele possa ter mudado de ideia.
– Obrigado, senhor, farei isso.
– Você tem comida?
– Sim, senhor.
– Muito bom. Você deve encontrar algumas frutas na floresta também. – Depois de alguns minutos em silêncio, Josh completou: – Se você encontrar Demi, diga que tudo ficará bem e que vamos nos ver logo.
– Sim, senhor, eu direi.
Josh sorriu. – Obrigado, rapaz. Tome cuidado e que os ventos lhe favoreçam.
– O senhor também, tenha uma boa viagem.
– Obrigado!
Bunn ficou olhando Josh se afastar por um tempo e depois se embrenhou pela mata. Andou por mais uma hora, até não conseguir mais ver a borda da floresta, e então encontrou um lugar para passar a noite. Seu sono foi desconfortável e curto e, um pouco antes do alvorecer, ele partiu novamente, indo cada vez mais para dentro. Enquanto seguia entre as árvores, Bunn ia pensando em como conseguiria sair de lá quando precisasse e também pensava se poderia arriscar chamar o nome de Aisni, mas achou melhor não.
O calor era intenso e o sol já devia estar alto no céu, mas Bunn não conseguia vê-lo, pois as árvores eram altas e cheias de folhas. Ele gostava de andar entre as árvores, estava acostumado a caçar na pequena floresta perto da aldeia, mas essa era diferente. Além de ser muito maior, tinha algo de diferente no ar, algo que se intensificava conforme ele continuava andando. Quando imaginou que fosse mais de meio-dia, sentou-se para comer alguma coisa e descansar um pouco os pés da caminhada.
O cansaço poderia explicar o que aconteceu a seguir, mas isso não diminuiu em nada a irritação de Bunn ao perceber que tinha adormecido. Acordou assustado e viu que já era noite. Levantou rapidamente e começou a andar novamente, mas a escuridão tornava difícil desviar de raízes e até mesmo alguns animais que apareciam ocasionalmente em seu caminho. Bunn já estava quase desistindo de tentar andar durante a noite quando ouviu pessoas conversando a alguma distância. Por um momento ficou com medo de que fossem os homens da aldeia, mas a conversa parecia alegre e descontraída, o que não combinava com eles. Aproximou-se cautelosamente das vozes e se escondeu atrás de uma árvore para conseguir ouvir. Havia quatro pessoas em torno de uma fogueira e duas delas estavam conversando despreocupadamente, enquanto os outros dois dormiam, apesar da conversa.
– Eu ainda acho que Niara não deveria trazê-los.
– Eu acho que talvez seja bom. Estamos a tanto tempo isolados aqui que ter alguns forasteiros poderia ser interessante.
– Mas quais as chances de eles serem divertidos? Não me parece provável.
– Mas pode ser, oras! E as mulheres mortais são tão lindas. A mortalidade lhes confere uma urgência em viver e em aproveitar a vida, e uma beleza passageira e intensa, diferente das do nosso povo.
Bunn atentou para a palavra ‘mortais’ e ficou mais interessado ainda naquelas pessoas.
– E o que isso quer dizer?
– Quer dizer que são mais alegres e mais divertidas.
– Mais alegres ou mais fáceis de serem enganadas por você? 
– Fácil é a última coisa que as mulheres são, seja da raça que for.
Nesse momento ambos caíram na gargalhada. Bunn, ainda escondido, estava curioso e fascinado. O que seriam eles? E existiria mesmo uma raça imortal que não fossem os dragões, tão parecida com os humanos? Ficou perdido em pensamentos e, sem ao menos perceber o que estava fazendo, se levantou e se dirigiu aos estranhos.
Eles se levantaram assustados e deram gritos que acordaram seus companheiros adormecidos. Nesse momento Bunn acordou do encantamento em que estava e percebeu o que havia feito, sem entender como fora parar ali. Fez uma reverência, pois não sabia mais o que fazer, e então ficou esperando que eles falassem alguma coisa.
Depois do susto, os estranhos pareciam ter se acalmado e os que estavam dormindo ainda estavam confusos. Um dos que estavam conversando disse:
– Quem é você e como chegou até aqui?
– Meu nome é Bunn e cheguei até aqui andando, senhor.
Eles riram quando ouviram seu amigo ser chamado de senhor.
– Não precisa me chamar de senhor, Bunn, meu nome é Knut e esses são meus amigos Nowak, Wilfred e Radomil.
Todos acenaram com a cabeça.
– Quando perguntei como chegou até aqui não me referi ao seu meio de transporte. Quero saber como conseguiu passar por nossas barreiras.
– Não encontrei nenhuma, senhor Knut.
– Knut – insistiu.
– Knut – repetiu Bunn.
– Não encontrou?
Bunn negou com a cabeça. Não conseguia encontrar palavras para descrever o que estava vendo. Já ouvira lendas sobre seres mágicos e imortais, como os rovos, mas nunca ouvira sobre essa raça tão incrivelmente parecida com os homens.
Eles sussurravam entre si e pareciam preocupados. Depois de algum tempo, Knut voltou a falar:
– Você está perdido?
– Posso dizer que sim, se... Knut.
– E para onde vai?
– Ainda não sei, na verdade.
– Se importaria de nos acompanhar até nossas casas para falar com nosso líder? Talvez ele possa ajudar e tenho certeza de que quererá lhe fazer algumas perguntas.
– Tudo bem. – Bunn tinha a impressão de que sua vontade não era relevante e que eles o levariam de qualquer maneira e rezou aos deuses dragões para que não fosse um povo mal.
– Você está muito cansado ou pode caminhar? – Era sempre Knut quem falava.
– Posso caminhar.
– Está com fome?
Bunn poderia comer algo, mas preferiu negar com a cabeça. Estava intimidado pela estatura e beleza daqueles seres, todos de cabelos castanhos e com vozes suaves.
– Então nos dê alguns segundos e já partimos.
Bunn esperou enquanto eles apagavam a fogueira e guardavam as poucas coisas que carregavam. Eles estavam sempre sussurrando entre si e ele não conseguia ouvir nenhuma palavra.
– Podemos ir – disse Knut apontando o caminho.
Bunn seguiu dois deles que já estavam em marcha, enquanto Knut e o outro vinham logo atrás. Tudo o que tinha acontecido nos últimos dois dias parecia um sonho, mas principalmente isso. Ele estava apavorado e maravilhado, achando que provavelmente tinha caído em uma das lendas que ouvira, em que sempre havia seres mágicos e aventuras. Só lamentava que não fosse uma lenda que conhecesse e, sendo assim, não tinha ideia do que o aguardava adiante.